Temo que esta seja uma das últimas cartas que te escrevo. Creio que já te disse tudo o que tinha a dizer.
O sangue que tu congelaste já voltou a correr-me nas veias. O coração que tu destruíste já bombeia outra vez. Cheio de remendos, é verdade. Se estão bem cozidos? Não sei. Teremos que esperar para ver. Talvez as linhas cedam com o passar dos anos. Ou talvez se tornem mais resistentes.
Quando era pequenita, a minha avó dizia sempre à minha mãe “Deixa a pequenita brincar à vontade. Se cair e esfolar os joelhos, a água limpa e o tempo cura.”. Tu foste o maior trambolhão que eu já dei. Rasgaste cada milímetro do meu corpo. Se tivesse sido atropelada por um camião não teria ficado em tão mau estado.
Mas passou. Como tudo. E como tudo, deixou marca. Profunda.
Sabes, voltei a cair. Desta vez, com o triplo da força. Ainda estamos no princípio, mas o sofrimento que me provocaste, comparado com o que ele provoca, foi como o roçar de uma pena na minha pele. As forças? Consomem-se como pólvora. Já começo a ver o rastilho. O fim está próximo. Não peço força para superar. Só peço força para aguentar.
Volta para mim com todo o teu sofrimento. Cedo-te o meu coração para rasgares a teu belo prazer. Não és capaz de me causar nem um quinto do sofrimento que ele causa. Podes voltar a dissipar cada milímetro do meu corpo. Nunca chegarás tão fundo quanto ele. Vem e trás contigo toda a raiva que sentes, todo o ódio que nutres, todo o desespero que sofres, todo o tormento que és capaz de infligir. Vem. Serei a tua cobaia. Deposita em mim todos os males que carregas. Aceitar-te-ei com um sorriso no rosto. Agora, serás como uma pena que roça ao de levo em mim.